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quarta-feira, 18 de agosto de 2010

A ilha (uma fábula do autoconhecimento)



*Ricardo Kelmer

Talvez uma ilha na verdade fosse uma… montanha! Sim, uma montanha com o pico fora dágua

Era uma ilha que vivia no meio do oceano. Levava uma vida tranquila, sem grandes questionamentos. Conhecia outras ilhas e com elas se comunicava. Um dia, porém, uma ideia inquietou a ilha: se toda vez que a maré baixava, uma porção de terra se descobria, então até que ponto haveria terra? Até que ponto a ilha existia?

Isso lhe tirou o sono por várias noites. De repente seu conceito sobre si mesma começou a mudar. Sempre se considerara uma porção de terra boiando à superfície da água, isso era ponto pacífico, todas as outras ilhas também pensavam assim. Mas agora já não podia acreditar nisso. Uma ilha não terminava logo abaixo da linha das ondas. Não. Continuava para baixo. Talvez uma ilha na verdade fosse uma… montanha! Sim, uma montanha com o pico fora dágua.

Saber que ela “continuava” além daquilo que sempre julgou ser era algo espantoso de se pensar. Assim, dia após dia, a ilha prosseguiu em seus esforços de autoinvestigação – precisava saber até onde existia. No entanto, à medida que sua atenção mergulhava em si mesma, as águas ficavam mais escuras. Era preciso cada vez mais concentração para não se perder. Ela prosseguiu, mais atenta, e descobriu que aquilo que existia abaixo da superfície continuava sendo ela mesma, sim, mas parecia ter algo como uma vida própria.

Cada vez mais surpresa, a ilha constatou que aquela parte mais profunda de si mesma levava uma existência semi-independente, porém interagindo sempre com a superfície: influenciando e sendo influenciada por ela. A ilha então soube a razão por que se comportava dessa ou daquela maneira e muitas coisas ficaram mais claras a respeito de si mesma, de seus relacionamentos com outras ilhas e da vida de modo geral. E a cada descoberta que fazia, outras mais se anunciavam e de repente era como se o Universo se expandisse para dentro dela mesma!

Muito tempo se passou até que se convencesse, verdadeiramente, de que era mesmo uma montanha com o pico emerso. Ela estava presa a uma base e essa base era uma enorme extensão de terra que funcionava como chão. Vinham de lá todas as ilhas. E para lá voltariam todas quando os movimentos da terra, dos ventos e das águas as forçassem a isso. Mas a grande maioria das ilhas não sabia que todas elas continuavam para baixo: por isso não entendiam as reais motivações de muito do que faziam. A parte acima da superfície era tudo que sabiam sobre si mesmas e isso era pouco. A parte submersa, a montanha, era a parte inconsciente de cada ilha, aquilo que desconheciam de si mesmas. E a terra do fundo do mar era o inconsciente maior, único, de todas elas, o lugar de onde vinham.

Ao entender esse fato, a ilha lembrou do tempo em que sua consciência de si própria se limitava àquela minúscula porção de terra à superfície. Todas as ilhas vêm do mesmo lugar – ela repetiu, intrigada com suas descobertas – porque são feitas da mesma terra… A areia e os nutrientes que as raízes de suas plantas colhem, vem tudo do mesmo chão… Todas as ilhas que existem são no fundo uma coisa só, que se experimenta em várias extensões de si própria e cada extensão possui consciência de si mas esta consciência é limitada pois quase nunca desce em direção ao fundo, acomodando-se na parte mais superficial… Se cada ilha se aprofundasse em sua noção de si própria, acabaria se conhecendo melhor e, por virem todas do mesmo lugar, conheceria melhor a todas as outras ilhas.

A ilha viu que eram ideias grandes demais, confundiam a mente. Aquela autoinvestigação era importante mas requeria muita atenção para não se perder durante o processo. Só assim poderia transitar com êxito entre as duas camadas de realidade, a que ficava à superfície e aquela mais escura e misteriosa que prosseguia rumo a seu próprio interior.

Enquanto tudo isso acontecia, as outras ilhas observavam seu comportamento e não entendiam bem o que ela tentava lhes dizer. A ilha sentiu-se só. Viu-se então pensando do ponto de vista da terra lá do fundo: se elas não se conhecem e elas todas são parte de mim, então eu ainda não me conheço tão bem… Assim sendo, como poderia condená-las? Não, não podia. Deveria entender e aceitar o ritmo natural da vida de cada uma das ilhas. Deveria agir com a mãe sábia e bondosa que incentiva todos os seus filhos mas tem de respeitar o caminho individual de cada um deles…

Foi então que, subitamente, a ilha percebeu, num intenso clarão de compreensão, que toda aquela vasta extensão de terra lá embaixo funcionava como um útero a expulsar pedaços de si mesma, forçando-os à superfície. Uma vez lá, eles se entendiam ilhas e começavam então sua aventura individual em busca de saber quem de fato eram, de onde vieram e por que existiam. Mas por que a terra fazia isso? Talvez para ela própria aprender com a experiência individual de cada ilha. Talvez, ao morrer, uma ilha levava à terra sua própria experiência, e ela serviria para formar as futuras ilhas e, assim, toda ilha continha em si, sem se dar conta, a mesmíssima areia das que a antecederam. Talvez, através da vida de cada uma das ilhas, a terra aprendia cada vez mais sobre si mesma…

Se isso era verdade, então cada ilha possuía uma enorme responsabilidade: conhecer-se a fundo, viver a vida da melhor forma possível e aprender o máximo que pudesse pois tudo o que vivesse formaria o material do qual seriam feitas as ilhas que a sucederiam.

A vida é mesmo uma tremenda aventura! – pensou a ilha enquanto se divertia com os olhares estranhos que as outras lhe lançavam. Uma aventura de cada ilha. Mas também da terra inteira.

(Do livro A arte zen de tanger caranguejos, desse autor)

*Ricardo Kelmer é escritor e roteirista, faz palestra sobre cinema, mitologia e psicologia.

10 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns...
pelo novo blog...
Obrigada pelas suas palavras lá no Mínimo...e...mais tarde...ainda hoje...a brincadeira continua...
com outra foto...

Acho realmente que cada um é uma ilha...e somos todos unidos pelo ar...que respiramos...pelo chão...por onde caminhamos...

Beijos
Leca

Anônimo disse...

E assim como Pangea, nos separamos e quem sabe voltaremos a nos encontrar?

Adorei!

Beijos

Unknown disse...

Me preciptei e comentei lá no Roxo Violeta, opinando mesmo sem ser um sábio na área de psicologia e ou sociologia.
O poster é de uma difusão e reflexão, que todos deveriam sempre ler e absorver.
Só não podemos é ser uma ilha solitária e desertica.
Abraço

Machado de Carlos disse...

Antigamente não existia a Internet. Existia sim, o rádio amador. Nem todos possuíam rádio, então as ilhas dificilmente se comunicavam.
Hoje com a tecnologia, via internet, as ilhas se interligam, um pouco mais, rapidamente. Então temos a possibilidade de nos conhecer, com mais facilidade através de um teclado. Em suma, verificamos que as ilhas podem se interligar.
Entretanto, devemos ter cuidado, uma vez que, ao estarmos ao lado do mundo tecnológico, temos notado que o ser humano passou por uma modificação, isto é, tornou-se mais um número no Universo de Ilhas.

Um Abraço!

Caminhos de cura disse...

Leca, obrigada pela sua presença. Sim, volto lá para prosseguir com a brincadeira. Unindo as nossas bases de montanhas submersas, deixamos de ser uma ilha isolada.
Abraços,

Caminhos de cura disse...

Pablo...quem sabe voltaremos, heim??? Obrigada por ir.
Abraços,

Caminhos de cura disse...

Sim, Lu, que saiamos do isolamento buscando nosso território comum a todos, e imenso...
Abraços,

Caminhos de cura disse...

Machado, penso que sua preocupação procede. O que pode unir pode também separar.
Obrigada pela participação.
Abraços,

AC disse...

Muito interessante e muito sedutor...
A ideia não é nova, mas agrada-me a forma leve e pedagógica de que se serve o autor, a fim de chegar ao maior número possível de ilhas, desculpe, de pessoas.

Beijo :)

Caminhos de cura disse...

Ac, a forma como o autor trata os temas é que é bem interessante mesmo.
Abraços